Foi uma cerimônia rápida e sem discurso. Na
manhã de 15 de março de 1985, sexta-feira, o Congresso Nacional deu
posse a José Sarney. O novo vice-presidente, logo em seguida, dirigiu-se
ao Palácio do Planalto. Lá, no papel de presidente interino, fez um
pronunciamento quase lacônico aos novos ministros.
— Eu estou com os olhos de ontem — abriu o discurso, referindo-se à madrugada que ele, angustiado, passara em claro.
Não só ele. O Brasil
todo estava atônito. Na noite anterior, a 12 horas da posse, Tancredo
Neves, o presidente eleito, era levado às pressas ao Hospital de Base,
em Brasília, para ser submetido a uma cirurgia no abdome.
A posse era aguardada com
ansiedade porque marcaria a volta do país às liberdades democráticas,
após 21 anos sob o tacão da ditadura. Entretanto, temia-se que os
militares usassem a ausência de Tancredo como pretexto para impedir a
posse do vice e dar um novo golpe.
A madrugada mais longa da República completará 30 anos daqui a duas semanas.
O Arquivo do Senado guarda
os discursos feitos pelos senadores, da tribuna, naquele momento
histórico. Os documentos mostram que, a caminho do 15 de março, o país
estava eufórico. A expressão “Nova República” era repetida à exaustão.
Ninguém antecipava o sobressalto que se avizinhava.
Na véspera da posse, o senador José Sarney (PFL-MA) se despedia dos colegas no Plenário:
— Saio do Senado no
alvorecer de um momento extraordinário de floração de grandes esperanças
no país. Tenho a nítida visão histórica e política da missão que
exercerei. Posso dizer ao Senado que exercerei a Vice-Presidência com
absoluta doação, total sacrifício e uma visão maior das minhas
responsabilidades de político, num momento de restauração do poder
civil.
Pedro Simon (PMDB-RS) também deixava o Senado. Ele se licenciava para ocupar o Ministério da Agricultura:
— Parece-nos importante a
data que viveremos amanhã. Uma data que, após 21 anos, marca uma mudança
importante no cenário político desta nação. A candidatura do senhor
Tancredo Neves nasceu do debate e da vontade popular, percorrendo as
ruas e praças deste país, na campanha pelas eleições diretas, que
infelizmente não foram aprovadas pelo Congresso. A sociedade teve ampla
presença na elaboração de um programa de transição que significa uma
nova página na história deste país.
Simon se referia à campanha
das Diretas Já, iniciada em 1983. Mobilizações pelo país pressionavam o
Congresso a aprovar a Emenda Dante de Oliveira, que previa a eleição
direta para presidente. Tancredo foi um dos políticos mais aguerridos do
movimento. Em 1984, porém, a emenda foi rejeitada.
Reunião de cúpula
As esperanças, então, foram
todas depositadas na eleição indireta de 1985. Mais especificamente, na
candidatura opositora ao governo militar. Em 15 de janeiro, o Colégio
Eleitoral (formado pelos senadores e deputados, além de delegados das
assembleias legislativas dos estados) elegeu Tancredo, com 480 votos. A
vitória foi esmagadora. Paulo Maluf, o candidato governista, obteve 180
votos.
Ainda na véspera da posse, o
senador Martins Filho (PMDB-RN) subiu à tribuna para também explicar a
relação entre as Diretas Já e a ascensão de Tancredo:
— O presidente Tancredo
Neves não é do meu partido, nem do PFL, nem da Aliança Democrática. É,
antes de tudo, o presidente feito pelo povo. O povo que saiu às ruas,
aos milhões, num clamor por eleições diretas. O povo que, traído por
representantes que não ouviram seu apelo tão enfático, agarrou-se a
Tancredo como que a uma bandeira. Assim Tancredo se fez presidente de
cada brasileiro, muito antes que o Colégio Eleitoral cumprisse a
formalidade legal de elegê-lo. Bem-vindo, presidente!
Bem-vinda, Nova República!
A hospitalização, às 22h do
dia 14, impossibilitava a presença de Tancredo na posse, às 10h do dia
15. Brasília assistiu a várias reuniões políticas pela madrugada
adentro. Não estava claro se o vice poderia assumir o poder sem o
titular já estar empossado.
Entre os documentos
guardados no Arquivo do Senado está a ata de uma reunião, realizada
antes de amanhecer, da cúpula do Poder Legislativo — os presidentes do
Senado, José Fragelli (PMDB-MS), e da Câmara, Ulysses Guimarães
(PMDB-SP), e os líderes partidários das duas Casas. Eles decidiram o
futuro.
“Ouvidos
todos os presentes, houve inteira concordância no sentido de, mediante a
apresentação de laudo médico que comprove a impossibilidade de o
presidente eleito ser empossado nessa solenidade, a Mesa do Senado
deverá dar posse ao vice-presidente eleito”, diz a ata.
Informado da decisão por
telefone, Sarney não conseguiu dormir. Às 10h, ele chegava ao Congresso
para prestar juramento como vice-presidente e assumir interinamente a
Presidência.
Outro documento histórico
do Arquivo do Senado é o livro que contém os termos de posse de todos os
presidentes do Brasil, desde o marechal Deodoro da Fonseca. Como são
redigidos por calígrafos, eles precisam ser preparados com antecedência.
O livro, por isso, traz o termo que Tancredo não conseguiu assinar. A
folha teve que ser anulada. Sobre o texto, com caneta vermelha,
anotou-se “sem efeito” em letras garrafais. Um novo termo de posse
precisou ser escrito às pressas, em nome do vice-presidente.
Sarney encontrou o Planalto
vazio. O presidente João Figueiredo se recusara a passar a faixa
presidencial para o vice. Eles eram inimigos desde que Sarney deixara a
presidência do partido governista, o PDS, e se juntara à oposição,
levando consigo correligionários insatisfeitos com o governo militar.
Figueiredo saiu do Planalto pela porta dos fundos assim que a sessão no
Congresso Nacional terminou.
Primeiras medidas
No dia 18, o senador Carlos Alberto (PDS-RN) subiu à tribuna para defender o último presidente militar:
— Na quinta-feira à noite,
eu telefonava para o presidente Figueiredo para falar acerca da situação
no país quando Tancredo Neves era hospitalizado e eu via José Sarney
sair às pressas do bloco onde residimos. Perguntei qual era a posição de
Sua Excelência, e a resposta foi aquela que eu esperava: “Carlos
Alberto, a Constituição será respeitada. Eu jurei fazer deste país uma
nação democrática no dia em que assumi a Presidência”. Temos que fazer
justiça àquele que deu todas as condições para que Tancredo pudesse ser o
presidente eleito.
Os dias seguintes se
seguiram com relativa tranquilidade. Segundo os médicos, a cirurgia
havia corrido bem. Acreditava-se que Tancredo logo teria alta.
Na tribuna, o senador
Humberto Lucena (PMDB-PB) fez um relato da primeira reunião ministerial,
ocorrida no dia 17, domingo. Nela, Sarney havia anunciado, por exemplo,
um corte de 10% do Orçamento fiscal e a proibição de contratação de
novos funcionários públicos.
— São essas as primeiras
mudanças da Nova República. São firmes e vigorosas como pretendia o
presidente Tancredo Neves e como as vem conduzindo o vice-presidente
José Sarney, embora ainda não tenham o colorido que só a presença
daquele que foi escolhido pelo Colégio Eleitoral, com o respaldo total
da sociedade brasileira, poderia lhe dar. Mas esperamos em Deus que isso
possa ocorrer dentro de poucos dias — disse Lucena.
Na avaliação do senador
Carlos Chiarelli (PFL-RS), Sarney vinha governando “com discrição,
probidade, competência, admiração e respeito”. O senador Moacyr Duarte
(PDS-RS), que apoiava o regime militar, discordou:
— O presidente José Sarney
não pode e não deve, por maior fidelidade e devotamento que guarde ao
titular do cargo, condicionar a saúde da nação à saúde do seu primeiro
magistrado. O governo precisa deslanchar, governar a pleno vapor, e não
apenas em câmera lenta, esperando pelo imprevisível.
Ao invés de melhorar,
Tancredo piorou. A situação ficou tão grave que os médicos decidiram
transferi-lo para o Instituto do Coração, em São Paulo. O diagnóstico
começara com apendicite, fora mudado para diverticulite e no final
acabara sendo fechado em tumor benigno no intestino. Ao todo, Tancredo
passou por sete cirurgias. Até a oposição ficou sensibilizada.
— A prolongada e comovedora
agonia do presidente vem provocando em toda a nação impressionantes
demonstrações de solidariedade, evidenciando a realidade de um povo
traumatizado e perplexo diante de uma tragédia sem paralelo nos anais da
história do Brasil — discursou o senador Lourival Baptista (PDS-SE) em
17 de abril.
Tancredo Neves morreria
pouco depois, de falência de múltiplos órgãos, no dia 21, domingo,
feriado de Tiradentes. Milhões de brasileiros, emocionados, acompanharam
os cortejos fúnebres em São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e São João
del Rei (MG), sua cidade natal, onde foi enterrado.
Espiões
Segundo
o jornalista José Augusto Ribeiro, que foi assessor de imprensa de
Tancredo na época do Colégio Eleitoral, ele sabia desde a virada de 1984
para 1985 que algo não ia bem em seu abdome. Entretanto, recusava-se a
consultar-se com um médico porque sabia que os espiões do Serviço
Nacional de Informações (SNI) seguiam seus passos. Com a informação de
alguma doença, a ditadura poderia “virar a mesa” e cancelar o Colégio
Eleitoral.
Tancredo buscou ajuda
médica apenas em 11 de março, quando as dores já beiravam o
insuportável. A operação deveria ser imediata. Ele rechaçou a ideia.
Disse que só iria para o hospital depois da posse. Na noite do dia 14,
porém, não havia mais como adiar. Tancredo morreria se deixasse a
cirurgia para o dia seguinte. Para convencê-lo, seu sobrinho Francisco
Dornelles blefou dizendo que Figueiredo havia aceitado a posse de
Sarney.
— Tancredo foi um político
raro. Ele achava que tinha o dever de sacrificar a própria vida se isso
fosse necessário para garantir a transição democrática do Brasil. Foi o
que ele fez — afirma Ribeiro, que lançará nos próximos dias a biografia
Tancredo Neves: a noite do destino (editora Civilização Brasileira).
O temor de Tancredo era
justificável. No livro, o jornalista conta que Figueiredo, ao saber da
internação, propôs ao ministro do Exército, general Walter Pires, que
acionasse os militares para impedir a posse de Sarney. A ideia só não
foi executada porque Pires não tinha mais poder. A exoneração dos
ministros já havia sido publicada. Figueiredo teve que se resignar.
O jornalista Antônio Britto
seria o secretário de Imprensa do governo Tancredo e acabou sendo o
porta-voz das informações médicas — foi ele quem comunicou ao Brasil a
morte do presidente, num anúncio transmitido ao vivo pela TV e pela
rádio. Britto afirma que o “sacrifício pessoal” de Tancredo é comparável
ao de Getúlio Vargas, que em 1954 se suicidou para impedir que os
militares dessem um golpe de Estado. Ele diz:
— Trinta anos atrás, as
ruas do país foram ocupadas por milhões que choravam por um político.
Não se imagina algo parecido ocorrendo hoje. A população nutre uma
perigosa rejeição à política. Precisamos refletir sobre o que aconteceu
com a política e os políticos no Brasil.
Sarney: Tancredo ainda não recebe do país o devido reconhecimento
José Sarney passou 37 dias como
presidente interino. Com a morte de Tancredo Neves, assumiu
definitivamente a Presidência da República e consolidou a
redemocratização. A seguir, trechos da entrevista concedida ao Jornal do
Senado:
“Eu
não consegui dormir na virada de 14 para 15 de março. Passei a
madrugada acordado porque estava profundamente preocupado e angustiado,
acompanhando os acontecimentos da doença do Tancredo. A minha
preocupação não era tanto política. Era mais humana, porque eu era amigo
do Tancredo. Ainda no hospital, começou-se a dizer que eu teria que
assumir como vice-presidente. O Ulysses [Guimarães, presidente da
Câmara] me disse: ‘Lutamos muito para chegar até aqui. Não podemos parar
agora. O Brasil precisa dessa atitude’. Eu respondi: ‘Só assumo com
Tancredo’. Eu tinha a absoluta certeza de que o Tancredo estaria em
condições de assumir dentro de uma semana, já que seria uma operação
relativamente simples. Ninguém imaginava o desfecho daquela
hospitalização. Fui para a minha casa. Às 3h da manhã, recebi um
telefonema do [José] Fragelli, que era o presidente do Congresso:
‘Sarney, já está resolvido. Você vai assumir como vice-presidente logo
mais, às 10h. Nós vamos lhe dar posse’. Havia a informação de que a área
militar que apoiava o [presidente João] Figueiredo e o [ministro do
Exército] Walter Pires pretendia fazer um levante nos quartéis para eu
não assumir e não haver a transição democrática. Foram momentos
dramáticos. Quando o Fragelli me disse tudo aquilo, minha ficha caiu.
Foi então que eu senti que a minha responsabilidade era imensa, que o
futuro do país dependia da posse. Havia uma ala militar que estava do
nosso lado, comandada pelo Leônidas Pires Gonçalves, o ministro do
Exército escolhido por Tancredo. Alguns minutos depois, por volta das
3h30, foi o Leônidas que me ligou: ‘Sarney, você tem que prestar o
compromisso às 10h. Não crie nenhuma dificuldade para nós. Todos nós
estamos depositando extrema confiança em você’. Antes de desligar o
telefone, ele se despediu: ‘Boa noite, presidente’. Aquela frase me
marcou. Na hora marcada, eu estava no Congresso.
Na minha opinião, o Tancredo ainda não
ocupa o lugar que ele merece na história do Brasil. Falta da sociedade o
reconhecimento necessário. Foi ele quem garantiu a transição
democrática. Graças a ele, com seu temperamento e sua experiência, a
transição foi feita sem traumas, ao contrário do que ocorreu em outros
países da América Latina, onde a transição se deu com guerra, violência,
derramamento de sangue. O [jurista e político] Afonso Arinos tem uma
frase que resume muito bem: ‘Muitos deram a vida pelo Brasil. O Tancredo
deu a sua morte’. Nós sempre seremos devedores do Tancredo.
Foi um tempo muito difícil, mas terminou
bem porque conseguimos garantir a redemocratização do país. Como
presidente da República, convoquei a Assembleia Nacional Constituinte,
que nos deu a Constituição que temos até hoje. Graças a ela, vivemos
numa democracia social. A cidadania se consagrou. Antes, o governo só
tinha preocupação econômica. Naquele momento, o social entrou na pauta.
Para dar apenas um exemplo, a saúde, que era um privilégio daqueles que
tinham carteira assinada, passou a ser um direito de todos os
brasileiros. Figueiredo não quis me passar a faixa. O meu sucessor
[Fernando Collor] era meu adversário político, e eu lhe entreguei a
faixa presidencial. Naquele momento [nas eleições de 1989], a República
comemorava 100 anos. Só pudemos comemorar de verdade porque já vivíamos
numa democracia plena.”
Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)
Nenhum comentário:
Postar um comentário