sexta-feira, 5 de julho de 2013

O paradoxo do 'golpe democrático' no Egito

 

Uma democracia em que algumas centenas de milhares de manifestantes conseguem cancelar, no grito, os votos de muitos milhões é algo como um concurso de calouros.

A discussão sobre a natureza da intervenção militar que derrubou o presidente eleito do Egito, Mohamed Mursi -- basicamente, um exercício semântico sobre a aplicabilidade da palavra golpe, rejeitada por alguns observadores em vista do gigantesco levante popular que lhe serviu de moldura -- é menos importante para o Egito e para o mundo do que a comprovação da extrema fragilidade da democracia naquele país.

O que chamou a atenção dos observadores atentos não foi a maneira como os militares "serviram ao interesse público e defenderam a população", nas palavras do chefe das Forças Armadas, Abdel Fattah al-Sisi, mas sim a forma como um presidente escolhido em eleições livres e democráticas -- as primeiras da história do Egito -- foi expulso do poder, bastando para tanto que multidões fossem às ruas pedir sua saída.

Mursi foi deposto exatamente como seu antecessor, Hosni Mubarak. A diferença é que Mubarak era um ditador, há mais de 30 anos no poder. A principal acusação contra Mursi era de que ele tentou conseguir superpoderes e "sequestrou" a revolução, buscando ampliar o espaço de seu grupo político. Mursi se defendia, afirmando que em um ano de governo os opositores não o deixaram sequer iniciar as mudanças exigidas pelo povo.

Num Estado democrático digno desse nome, diante da acusação de abuso de poder, o presidente poderia ter sido processado e, caso ficasse comprovado que violou as leis ou a Constituição, perderia seu mandato. Ainda imbuídos do espírito de renovação que os levou para as ruas em 2011, para exigir a saída de Mubarak, os egípcios que reocuparam a lendária praça Tahir gritando pela cabeça de Mursi podem ter cometido um erro histórico.

Uma democracia em que algumas centenas de milhares de manifestantes conseguem cancelar, no grito, os votos de muitos milhões não é democracia: é algo como um concurso de calouros. Mursi não era o presidente dos sonhos dos egípcios, mas tinha um mandato popular, que lhe fora conferido pela maior parte dos votantes, e esse mandato deveria ter sido respeitado como algo maior que os partidos e as insatisfações do momento.

A prática democrática exige uma predisposição de espírito, uma resolução íntima de aceitar os resultados das urnas, mesmo quando o adversário é o vencedor. O fato de alguém não atender às expectativas de uma parte da população não pode ser aceito como argumento para que as regras mutuamente pactuadas sejam violadas, abrindo-se espaço para o paradoxo -- difícil de explicar conceitualmente -- de um golpe "para preservar a democracia".

A despeito da insistência dos militares em afirmar que apenas aquiesceram à vontade do povo e que não querem governar, mas sim conduzir o país para novas eleições, parece claro que o cenário político será agora manipulado, antes que o povo possa eleger um novo presidente. E que os riscos de o Egito cair nas mãos de certas pessoas e grupos serão prevenidos com o enfraquecimento das lideranças islamitas.

Sintomaticamente, Mursi e membros da Irmandade Muçulmana foram presos, enquanto canais de TV simpáticos ao ex-presidente eram tirados do ar. As imagens televisivas que foram para o Egito e para o mundo mostraram apenas a festa pela derrubada do ex-presidente, enquanto protestos pela permanência de Mursi, feitos pelos muçulmanos que são a esmagadora maioria da população, foram minimizados ou totalmente ignorados.

Que país emergirá desse primeiro e grave tropeço? Será que os muçulmanos aceitarão os resultados das eleições prometidas e se contentarão em ser governados por um adversário, depois de terem seu presidente cassado como um ditador infame? Talvez o futuro traga aos egípcios uma constatação amarga: a de que jogaram fora sua revolução ao chamar de volta à cena os militares, quando poderiam acionar as instituições e salvar a democracia.
 
Fonte  Jornal  Cruzeiro do Sul

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